7 de abr. de 2009

D

D está deitado há horas, sem conseguir dormir por causa do calor. Levanta-se para ir à Molero, a pequena livraria vinte e quatro horas que funciona perto de sua casa. Desde o começo do verão, D está com essa mania de descer para o ar condicionado da Molero todas as madrugas. Sua dúvida era se Rosa já havia notado. Rosa dorme pesado e eu nunca comentei nada, se estivesse indo pra casa da Clara, ela também não notaria. Pede um mocha gelado e pega um livro na estante, um livro de Viagens, Buenos Aires, foi onde eu conheci, senta, quando ainda está em Palermo Viejo, seu telefone toca, Julio, seu amigo quinze anos mais novo que às vezes liga para dizer o que há de bom na cidade, pra lhe instigar e chamar pra sair, pra visitar os novos bares que D ainda não conhece, não lhe deixar morrer. Às vezes, pra cocaína. Julio convida para uma festa tropicalista, à fantasia, de um velho amigo artista plástico, é a festa de Belbano e todos estão aqui, menos você. D já tem cinqüenta e dois anos mas ainda não desistiu da noite catalã, ainda acredita nela e ainda acredita que na rua aumentam suas possibilidades para o inesperado, pro inevitável e nisso D era completamente viciado, como um jogador. Vai pegar o carro na garagem mas o porteiro já não quer abrir a porta. D não quer buzinar, não quer acordar o prédio. Desliga o motor, sai do carro e sacode o porteiro, que acorda num pulo, apavorado, depois da crise mundial, esse porteiro já sofreu cinco assaltos, num deles, lhe fizeram maldades sem motivo, lhe jogaram água fervendo no peito, pra continuar no emprego noturno, precisou entrar nos remédios tranquilizantes mas esses remédios estavam dando muito sono, passou então a tomar também um energético de farmácia chamado Arebite, mas o energético pelo visto vinha perdendo pro tarja preta. O brasileiro abre o portão e D desce a ladeira com o motor desligado só vindo a ligá-lo de novo quando já está no sinal da Corrientes. Chegando de carro em frente ao endereço, D sente inveja por Belbano ter enganado à todos com sua arte globalizante, populista e feia, sem propósitos. Sente vontade de não entrar e se pergunta, infinitamente, porque ainda freqüenta a casa de pessoas que odeia, ao mesmo tempo, pensa também que está com fome e que merda, beberá mais uma vez com fome e isso estraga as minhas manhãs. Seu nome não está na porta. D odeia as portas que não lhe estão abertas. D nem troca palavras com os seguranças, dá meia volta e lembra do calor que está fazendo em seu quarto. Encontra no caminho pro quarto, Vitoriana, fantasiada de ganso, já muito bêbada e decadente, porque Vitoriana é uma artista plástica desconhecida como eu mas diferente de mim, se lançou às bebidas. Ela lhe intima à entrar, me adora e jamais pensaria coisas barra pesadas sobre mim como eu faço com ela. Só aqui dentro posso perceber que absolutamente todos estão fantasiados, devia vir especificado no convite, menos eu. Será que Belbano acha que o movimento tropicalista teve alguma coisa a ver com fantasias? Vejo Belbano, rodeado de gente, com uma roupa de, parece um viking mas também traz um arranjo de flores no pescoço. Antes que ele me veja, amarro minha camisa na cabeça, pronto, sou um árabe, não, melhor não, será uma piada sem graça e no ano passado os árabes explodíram os trens madrilenos, está tudo ainda muito recente, foda-se, esses artistas têm senso de humor ou não têm, até onde eles podem ir? Vou cumprimentá-lo, Belbano é extasiante, me trata muito bem, sempre, por saber que eu sou muito mais delicado que ele, que minha obra é muito maior e significante mas que, diferentemente dele, não tive a mesma sorte, não sou um artista emergente para a mídia e na verdade, pago minhas contas com as aulas dadas no Parque St. Levi. Isso é o que pode se chamar de um cumprimento caloroso, eu também te adoro. Quase posso ouvir desculpe, eu te admiro muito mas a vida tem dessas perversidades e, lá no fundo, deve haver um motivo, talvez você não mereça o prestígio que eu tenho ou ele não te mereça mas eu peço descupas assim mesmo. Neste cumprimento, Belbano é ainda mais caloroso do que das outras vezes, por não ter me convidado pra festa e ele pensou nisso no momento em que me viu, afinal eu denoto um invasor que improvisou uma fantasia na entrada e Belbano provavelmente quer me deixar à vontade, gosta de mim, pessoas como eu lhe dão prazer, lembram até onde ele chegou, como se abrisse um pódio imaginário para cada artista plástico que vai cumprimentá-lo e eu não estou nem em vigésimo lugar. Cumprimento as meninas do MACA Century, sem fervor, porque elas são tão duras e mal sucedidas quanto eu e penso em onde teria se metido Julio, será mais fácil com Julio por perto, afinal eu não estou sozinho, estou com um amigo, jovem e belo. Enquanto cumprimento Cecile Deliene, me vejo por relance estampado no espelho de uma das pilastras da casa e vejo como a minha aparência está ridícula no meio de todos esses criativos artistas que produziram suas fantasias semanas antes, provavelmente num brechó de aluguel de Cleópatras e Zorros. Não desanimar jamais, penso na minha frase de juventude, vou até o banheiro pra ver se consigo melhorar a aparência, colorir um pouco, achar um batom. No silêncio do banheiro, D se pergunta por que ainda freqüenta as festas que já não lhe fazem bem, na verdade, não porquê freqüenta as festas mas sim, porquê não consegue deixar de freqüentá-las? De cara pro azulejo, agachado, pensa em como lhe incomodam esses apertos de mão, cheios de julgamento e pódios de chegada, diagnósticos de uma cidade como Barcelona. Enquanto pensa tudo isso, lembra também de quando era jovem e foi preso numa passeata na Calederos pelo fim da produção de sapatos feitos com o coro de jacarés. D já era um jovem artista e abateu uma enorme garça que pousara no parque, à sangue frio e à pauladas. Queria era mostrar pra aqueles ativistas como era doloso e bestial abater um animal, por qualquer que fosse. Era sua expressão, sua performace, sua obra, num pensamento fundido, D tem uma ideia, que não lhe trará diversão pra noite quente mas um pouco de calma. Tiro minha camisa da cabeça e enfio minha cara por dentro dela. Pelo buraco da gola agora passa a minha vista e amarro as mangas atrás da cebeça, como um ninja, melhor, como um traficante da guerra civil brasileira, eu sim, agora consegui uma fantasia tropicalista e numa cajadada, também encontrei a tão sonhada invisibilidade pra essa festa triste. Já consigo me divertir como eles, esquecer das agulhas, apenas dançar, dançar e beber, como um vulto livre. Puxo Belbano pra dançar, ele apreensivo, não me reconhece, me empurra, não me importo, eu sou o homem livre. Diz que não lhe empurre, que são amigos da época do conservatório, que sabe mais sobre ele do que possa imaginar e que talvez seja o único nessa festa que sabe que o seu exílio pro Marrocos não passou de um blefe publicitário, ornamentado por Ligia Tenra, sua agente oportunista, que achava importante pra um artista como Belbano ser expulso pela ditadura de Franco, lhe faria herói nacional e conseqüentemente, subiria o preço dos quadros. Pergunto se o plano deu certo. Como se o exílio fosse status bibliográfico. Pergunto sobre a semelhança entre o seu Quermesses, feito em mil novecentos e setenta e oito com o de Marina Toraro, pintado no México em mil novecentos e quarenta e quatro. Quem é? Quem é? Calma, Belbano, a música ainda não terminou. Pergunto porque ele nunca havia citado em suas entrevistas ser filho do General Montano, amigo pessoal de Franco e torturador implacável, descrito em livros trancados como um assassino deletério. Pergunto se a notícia faria vender menos quadros. Colo o meu rosto no seu, suado, penso que quero beijar. Pergunto como se sentia por descobrir que seu nome havia entrado para curta lista dos trinta e oito artistas espanhóis que serão esse ano indenizados em um milhão de pesetas por terem sido perseguidos pelo governo franquista. Pergunto como é a vida daí, desse lado do muro. Quem está aí? Peço uns conselhos, qual primeiro passo devo dar para atravessar o muro, respirar o ar puro do paraíso dos sem culpas, não sentir o cheiro. Antes que meu amigo comece a me aconselhar, surge um bando festeiro que escorre Belbano dos meus braços em direção a piscina, uma Marilyn, dizendo ter uma coisa incrível para lhe mostrar e que tem que ser agora.

3 comentários:

  1. "quem está aí?"
    adoro,amigo!
    orgulho!
    "Talvez" é lindo,ñ sei se já te disse...
    orgulho de vc!
    beijinhos
    Fanju

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  2. festa a fantasia decadente uma bela narrativa de amor e ódio a decadencia até onde pude ir.

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  3. Maria Rita vc estava nesta festa com certeza... Eu te vi lá. rsrsrsrs

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