11 de mai. de 2009

Garrancho

Escrevo essas palavras num quarto de hotel em Curitiba, enquanto acontece a festa lá embaixo, que celebra as apresentações de nosso espetáculo aqui no festival de teatro. É uma experiência que há tempos venho querendo fazer, a de escrever em uma situação inusitada e totalmente imprópria para a literatura. Não mais escrever num estado de introspecção e clareza das coisas mas interromper um ato continuo, uma celebração, onde a vida é mais interessante que a introspecção e ainda assim, optar pela escrita. Por isso, algumas palavras talvez saiam erradas, talvez alguns termos sejam exagerados, mas é que todos já estão ébrios lá embaixo e eu não quero me demorar.

Ontem
Estive mais livre ontem, em cena, do que hoje. Meu ímpeto suicida estava mais aguçado e esse ímpeto é essencial para este tipo de trabalho. Me permiti mais em cena, ousei mais e entrei num transe de consciência. Opa, ainda bem que eu subi pra escrever, talvez sem o champanhe, não traria essa expressão que define exatamente o que quero dizer! Ontem, durante o espetáculo, quando todos torciam pra que tudo corresse bem, entrei num “transe de consciência”. E por isso, não precisava mais ver, pois já via e nem escutar pois tudo já estava escutado. Não havia mais o antes, nem o agora nem o depois, ontem. Acredito que o artista que cria no momento presente, junto ao público, seja a mulher de cabaré, seja o 18o violinista da orquestra, saiba o quero dizer. O momento em que entramos em acordo com o público, caminhamos juntos, em certa harmonia caótica. Durante a cena, agachei-me para apanhar as roupas que tinham caído na cena anterior, sem querer. E em um momento, cantarolei a música da saudade, numa cena em que finjo tomar banho longe dos olhos do espectador, e ao mesmo tempo, apaguei um pequeno fogo que se iniciava no banheiro do teatro. Um fogo real, que iniciava porque uns plásticos de lixo fictícios haviam encostado num dos refletores reais. Curiosamente, terminei o espetáculo sem lembrar do ocorrido, lembrava apenas do canto da saudade, durante o transe. É que nessa vida queremos esquecer a dor mesquinha e tentamos lembrar apenas das coisas boas, pra continuar vivendo. E nesse momento da peça, o personagem canta feliz porque sua mulher vai voltar de viagem, e eu ali, na linha tênue entre a realidade e a ilusão, optei pela ilusão pra carregar na memória. No final, vieram os convidados comentar de uma fumaça que ocorreu durante o espetáculo e só assim me lembrei de ter apagado o possível incêndio, com os pés, enquanto cantarolava no falso banho. Lá embaixo estão todos dizendo ter gostado mais do espetáculo de hoje, dizem que eu estava bem melhor mas não conseguem dizer o que isso significa, não conseguem dizer os motivos. Gostaria de pedir mais uma coisa, que publicassem esse garrancho como chegar nesse papel, é que eu quis aproveitar esse momento presente e acredito que seus erros sejam inerentes a esse acontecimento, como os erros de ontem.

Um comentário:

  1. Vai que esse fogo fazia parte da secreta teatralidade do 'transe da consciência'? "O espectáculo só começa quando algo de real acontece..."

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