P - Fala um pouco da sua trajetória como ator no teatro... Como é isso?
AF – Eu faço teatro desde muito novo e eu posso perceber que existe uma simbiose entre minha trajetória pessoal e a minha trajetória profissional como artista. É difícil demarcar com precisão como é uma e como é a outra: a partir do momento que comecei a fazer teatro, fiz do teatro minha própria vida. Quero dizer com isso, que foram muitas criações, algumas terminadas e outras incompletas, muitas trocas e relações pessoais, de amizade, companheirismo, e pessoas que ficarão na minha vida para sempre. Mas o que eu posso dizer sobre essas trajetórias atravessadas – profissional e pessoal – é que existe uma busca, uma busca por alguma coisa que você não sabe muito bem o que é, mas que você necessita, que você sente falta. Na realidade a vida alimenta minha arte e a arte alimenta a minha vida.
P – Você fala de uma simbiose, como é isso exatamente?
AF – Vejo como uma opção. Eu opto por trabalhar assim, nesta simbiose entre a vida e a arte e tenho consciência disso. Me dei conta depois de algum tempo que, em cena, colocava muita coisa pessoal, muito das minhas experiências de vida no meu trabalho profissional, e esta mistura se dava às vezes racionalmente ou mesmo a partir de uma epifania. Com a consciência deste ‘problema’ passei a usufruir disso. E me dei conta de outra coisa tão importante quanto: Se eu já tenho essa característica espontaneamente, então o que eu posso fazer pra driblar isso? Para além, poder usufruir no meu trabalho, daquilo que eu não tenho pessoalmente. Daquilo que eu não tenho como característica pessoal, por exemplo. Esse outro lado também é bem importante. Como eu posso fazer pra partir do nada, partir do zero. E se não fosse eu fazendo esse personagem, e se nada disso existisse? E se eu tivesse que criar o lúdico, o diferente. Mas acho sempre que se tem que ter consciência dessa simbiose, se optar e saber que isso não é regra. Completando, então a pergunta. Tem que se ter sempre a consciência de que o trabalho não é apenas um depoimento pessoal, do seu momento de vida ou da sua experiência no passado. Não se pode nunca se limitar a isso, senão será um trabalho mesquinho. Esta simbiose é só mais uma opção, só mais uma possibilidade.
P – E essa discussão mais especificamente na relação do ator com os personagens?
AF – É difícil falar disso, falar se sou eu ou se não sou eu. É como falar do teatro realista e de uma interpretação naturalista. Essas são coisas que estão caindo, são cânones que não estão mais em voga. É claro que sou eu, mas em situações que eu talvez não passaria. Situações que eu passaria em um ano, eu crio para cinqüenta minutos. O tempo é outro, o espaço é outro, e partir disso, o Álamo é outro. Porque eu não suo no meu quarto em cinqüenta minutos, mas eu suo muito em cena em cinqüenta minutos porque em cena eu passo por muitos lugares sensoriais, uma montanha russa. O que acontece com ele, o leque de sensações, de opções e de lugares que ele vai passar concretamente ou oniricamente durante uma hora, vai ser muito maior e mais forte do que na nossa vida cotidiana. Então sou eu sim; no lugar onde me colocam um novo Eu.
P – Até que ponto vai o seu domínio sobre esse novo Eu?
AF – Ah!.. domínio... nenhum. Eu tenho total domínio, mas não tenho menor domínio de como vai ser a peça no dia. Eu tenho domínio de tudo, domínio de como vou preparar um drinque que eu, na minha vida, nunca fiz, por exemplo. Na peça eu faço. Eu tenho total domínio que primeiro eu vou abrir um Gatorade azul, depois vou botar um pouco de uísque – porque é um drinque teatral – e cortar uma laranja e colocar ali. Coisa essa que eu não teria o menor dom no dia-a-dia e passo a ter por causa da peça. Olha a simbiose aí! Eu tenho domínio disso, do concreto, mas de como isso vai ser feito... nenhum. Eu apenas me armazeno de coisas positivas, de tônus e sutileza, para que tudo possa correr da melhor forma possível, mas o acaso é que é... eu acho que é esse risco que está imperando – Estou totalmente ligado a ele nesta peça. E talvez seja através dele que eu desenvolva um outro olhar. Com o passar do tempo no teatro, sem dúvida, eu fui me apaixonando por esse risco. Quando fico dez dias sem ensaiar, quando me distancio um pouco do teatro, eu começo a inventar outros riscos. Gosto de nadar até alto mar, onde nadam os peixes grandes.
P – E como é este processo de criação como são os primeiros olhares sobre uma determinada obra?
AF- Eu me aproximo intuitivamente o que é fundamental. Me aproximo sensorialmente, sinestesicamente, de uma obra. Existe só uma sensação que eu não sei muito bem para onde vai me levar. Todo dia tem que ser um recomeço, toda hora está começando do zero. Toda nova peça é uma primeira peça. Não é como completar um quebra-cabeça, que já se sabe onde vai dar pois você viu a fotinho do castelo na caixa... mas é como... É... é como abrir um matagal a fundo: Eu vou pra lá porque tem uma cachoeira mas que eu só ouvi falar e não sei nem para que norte é. E essa curiosidade é que me faz ir adiante! Com o passar dos ensaios a razão vai ser um instrumento importante. Eu não posso deixar de interromper uma cena se eu descobrir alguma coisa importante, mesmo que ela esteja indo muito bem. A gente não vai deixar de parar, se tiver que anotar e analisar alguma descoberta importante. É como se esse cara que está abrindo o matagal, tivesse que ter também uma bússola, um mapa, instrumentos que vão além do devaneio. Mas durante a peça não, durante a peça é um animal. Por exemplo, nessa peça eu tinha que abrir rápido o tal Gatorade, mas percebi que eu tinha esquecido de deixar preparado para isso, então, na peça, quando eu fui tirar a tampa, havia ainda uma outra camada de plástico, uma segunda tampa. E essa ação sempre se encachava perfeitamente a um momento de fala minha, junto a ação. Eu, na hora, vi o plásticozinho branco e fiz assim: NHAC! Arranquei com a boca. Era bem próximo do público, e quem me visse pensaria: “Esse cara faz drinque há anos.” Na verdade há uma questão animalesca, e a questão do risco, e em um instante eu dialoguei com o Gatorade, com o público e com o texto. E foi sutil, sem fazer disso um exagero. Fiquei muito mais charmoso do que eu sou no dia-a-dia e muito mais ágil do que eu sou.
P- Uma questão que me veio a cabeça agora enquanto você falava... você pensa em cena?
AF -. Eu tava conversando isso com uma amiga minha esses dias. A gente pensa em cena. Mas o ator só se sente livre em cena, quando consegue pensar exatamente o que a situação, os objetos, a música e a história estão nos oferecendo ali. Eu estou tão livre, tão bem que, detalhezinhos de trazer essa mesa pra cá, empurrar essa cadeira aqui, acender esse luz, fluem! Eu penso exatamente com liberdade. Mas às vezes há um perigo nisso, quando você está há muito tempo em cena. Quando você começa a ter a liberdade de pensar somente dentro da situação, você pode começar a se sentir muito bem, porque é muito prazeroso. E aí você pode querer degustar demais disso, mas não é exatamente isso que as pessoas querem ver. Elas não querem só te ver à vontade. À vontade tá o apresentador de TV, o cara do caixa, a bilheteira. O público quer sangue! Se você está fazendo muito bem esse trabalho, vai começar a te dar um puta prazer, e isso pode se esvaziar. Mas sobre o pensamento em cena: No cotidiano o pensamento poder ser mais esgarçado, mais preguiçoso talvez... Em cena não, não dá pra ser assim. Uma palavra que eu uso muito – e tenho até que tomar cuidado com ela – é a determinação. Na cena tenho que ser determinado, na vida posso ser menos determinado. Na vida, ou melhor, no cotidiano eu posso confundir essa determinação com stress, com ansiedade e rejeitá-la. Na vida eu tenho que ter a calma e paciência de saber que não é a hora ainda. É assim, não é? Quando eu vi o DVD da estréia da peça, por exemplo... dizem que a estréia é um estupro... eu não penso assim não, mas é um leitura. Logo no início dá pra ver que eu tô totalmente tomado ali, que eu sou um vulto. Porque eu Álamo, são, jamais faria isso. Eu não faria isso são. Eu vejo que eu tô totalmente em outra forma de consciência.
P – Mas te transforma essa experiência?
AF – Transforma... não é um clichê. Todo mundo fala isso, não é? Mas transforma... Uma pergunta que você poderia me fazer é seguinte: “Mas isso tudo é verdadeiro ou é químico?” É verdadeiro, mas... também é químico. Assim como você coloca os elemetos x, y + z e inventa o LSD, você passa uma hora por essas situações (fazendo do seu cérebro uma “movióla” e acredita nisso!) e coloca cinqüenta pessoas pagando dinheiro (uma convenção universal, uma formalidade) e não pode parar, não pode parar por nada, e você tem que convencer, tem que ir além... então você acaba por produzir o que não ainda ninguém examinou. Tudo isso é real. Esta experiência química é o seguinte: é como se a sua sensibilidade ficasse mais aguçada. Como se descobrissem que um animal noturno não é ágil por igual durante toda noite, mas que em um determinado momento houvesse um ápice, e este ápice o saciasse por toda noite. Então o que há no teatro é esse ápice.
P – A gente está falando de liberdade, mas um tema importante relacionado ao teatro é a repetição. Como você vê isso?
AF – O teatro é o espaço da liberdade, não se pode deixar escravizar. Eu já fui escravo da repetição. Já fiz algumas peças no teatro, onde fiquei cinco vezes por semana repetindo, e isso me incomodou. Eu tentava driblar de forma artística esse incômodo, tentava me aproximar do que era divino ali, mesmo na repetição. Tentava buscar dentro dessa repetição um acontecimento, um happenig. Mas às vezes não tinha jeito, eu ficava entediado. Era uma peça que ficou em cartaz três anos, talvez tenha ficado tempo demais... Nessa peça que estou fazendo agora é totalmente diferente: a repetição está sendo a liberdade. Como se eu tocasse piano todos os dias e cada vez tocasse com mais prazer– é livre. Essa peça é bem interessante, porque como é um espetáculo solo, quer dizer, eu e a platéia sozinhos por uma hora, esta coisa da repetição fica muito clara: repetindo uma partitura de uma hora todos os dias, você pode ver como cada dia é totalmente diferente do outro. Como os astrólogos dizem e às vezes a gente não consegue perceber. Porque na vida, de um dia pro outro, a roupa muda, os compromissos são outros. No teatro, que é tudo supostamente igual é que a gente pode ter a clareza de perceber que cada instante é único. Essa é a ‘maquininha’ da repetição – não tô falando de trabalho mecânico de dia-a-dia, de ficar carimbando – tô falando de um lugar onde você repete a mesma ação, mas tem risco ali, tem diálogo ali, tem tempo. Eu não faço essa peça em uma hora ou uma hora e meia – eu faço em uma hora. Tem tempo ali. Eu vario no máximo um ou dois minutos. E apesar dessa precisão como é que consegue ser tão diferente um dia do outro? Eis a beleza da vida! O homem faz igual mas o acaso tem a palavra final! Repita o quanto quiser mas, diferente das máquinas, cada dia será um dia.
P- Como é essa relação com a platéia?
AF – Oscar Wilde falava que o único artista livre é aquele que não pensa no público. O ator pensa no público. Mas ele não pode fazer para o público. O ator pensa fingindo não pensar no público. Como no começo de uma nova paixão. É como se essa pluralidade que cada ser humano é, em cena, a gente tivesse que multiplicar ela de forma infindável, sabe como é que é? Se na vida a gente tem dois ou três pensamentos ao mesmo tempo, em cena a gente tem que ter uns quarenta ao mesmo tempo – e um deles sabe que o espectador está ali. São as vozezinhas... essas vozezinhas podem ser maravilhosas como podem ser péssimas. Eu acho que a partir do momento que você faz para um outro, você põe tudo a perder. Como eu posso fazer para o outro, o que já é para o outro, você entende? Um exemplo bom é o seguinte: a partir do momento que eu ensaio por cinco meses com um outro
(o diretor) que me vê todo dia naquela partitura de uma hora, aquele olhar vai se diluindo, vai passando a ser o meu – esse outro está em cena também. Então é difícil fazer o teatro acontecer para ele, é dificílimo fazer o teatro para ele. É muito interessante ver no ensaio, quando eu estou em cena, e entram inesperadamente três pessoas para assistir. Eu posso rapidamente passar o olho e ver que eles entraram e a cena instantaneamente muda. Mas isso ninguém pode perceber, só eu. Se eu mando isso pra eles, eu sou uma puta. Uma puta que faz show, e entra um gringo milionário e aí eu abro as pernas. Ninguém pode perceber que eu mudei porque existe um outro ali... porque o que existe no teatro são encontros. O espectador, por exemplo. Você tem espectadores que vão para dar, e espectadores que vão para receber. O que vai para dar é muito mais interessante. Porque o que vai para dar, vai para trocar: ele está dando e recebendo. O outro que vai só para receber, é um espectador viciadíssimo, é insuportável, ele diz: “Me dá aí!”. É complicado com esse espectador, às vezes dá vontade de parar a peça, mesmo sabendo que eu jamais faria isso. O outro que vem para dar e receber você pode remeter a milhões de coisas. Você pode remeter a sedução, você pode remeter a uma nova amizade. Quando o espectador está ali naquela cadeira em silêncio, ele está me contando mil coisas, ele está falando também, ainda que não verbalizando. Tem um jogo aí. Não é porque ele não está me falando, que ele não está me contando. Tinha que ter no hall de entrada dos teatros uma esteira de corrida com um vídeo-arte em frente, antes de abrir a sala de espetáculo para deixar o espectador quente – aí o cara entra. A vantagem do espectador é que ele pode julgar criticamente, enquanto o ator tem uma percepção entrecortada. O ator não tem muito tempo para julgar. Me incomodava há um tempo atrás esse fato de estar sendo julgado. Então eu pensava... “ahh... eu estou sendo julgado... “ . Mas um dia eu pensei “pêra aí...julgado por quem?” Com o tempo encontrei um saída: “Ao invés de pensar que está sendo julgado, porque você não pensa que está sendo seduzido e seduzindo.” Mas mesmo aí tem que estar atento com esta sedução, o ator que entra totalmente nessa entra em um buraco sem volta. A sedução não é a proposta do teatro, mas ela faz parte, sem dúvida.
P – Você falou a pouco em acontecimento, em encontro, como é a sua relação com o teatro?
AF – Existe uma reciprocidade entre o que o teatro me deu, e o que eu dei para o teatro. Então eu não sou um artista voraz que quer muito uma coisa e luta por isso a qualquer preço. Eu já recebi muita coisa que me causou motivo e curiosidade para ir além. Se não talvez eu já estivesse me relacionando com um outro tipo de experiência artística. Isso é a mesma coisa na relação com o personagem. Existe uma troca entre o ator e o personagem, onde um atravessa o outro. O personagem me modifica é certo, mas eu modifico o personagem também. Outra coisa importante que o teatro vem me dar é a cura. Mas não é qualquer cura, o teatro cura e adoece. Fisicamente então nem se fala. Parece que a gente adoece para curar. Sempre quando se aproxima de uma estréia eu adoeço fisicamente. O teatro me causa febre. O teatro é a febre. Eu tenho que brigar com ela, mas ela é foda, a febre é muito teatral também! Ela primeiro descodifica seus hábitos, seu próprio corpo. E no teatro raramente você está como você está na feira, como você está em casa. Então como é que você vai lidar com a febre? Vai torná-la sua aliada. Tudo me espanta e me abala aqui fora ( na cena), então tudo me abala e me espanta aqui dentro também, fisicamente. O teatro adoece para caralho. O teatro não dá para largar de mão senão se esfarela e você nem se dá conta. Então tem que ter uma preparação, uma preparação dosada! Em tudo na vida tem que ter uma dosagem, a gente tem que descobrir uma alquimia. Então o que adiante me dedicar intensamente a este trabalho? Até onde deve ir minha dedicação? Pra quê, para ser melhor ator? Será que é isso? Por isso, na preparação de uma peça, eu devo saber o quanto eu devo me dedicar, e o quanto eu devo largar de mão. Como se largar de mão fosse tão importante quanto a dedicação. Porque é nesse largar de mão que eu vou poder renovar o meu olhar, vai ser meu espaço de criação e risco. Eu mais novo não sabia disso. Eu achava que quanto mais me dedicasse melhor seria o trabalho. Achava que era na base da via crucis. Mas a gente descobre que talvez seja importante faltar um ensaio para ir na praia, para ir no mar. Pensa comigo: bem próximo da véspera de uma estréia, não se tem muito mais o quê fazer... e por que não ir a praia? E pensa bem, vai que se trata de uma estreia super importante, então eu vou à praia e encontro pessoas que não estão nem aí pro meu compromisso importante, minha ansiedade – o que isso pode me trazer? A renovação.
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