1 de mar. de 2009

Pequenos Países / conto do amigo Álamo Facó

Hospital St. Louis , 22:34 pm



Decidi suicidar. Já havia dois anos que eu morava nesse pequeno país quente, que faz de sua dança e música seu principal negócio. Estávamos nos tempos da principal festa popular da região, quando todas as mulheres se fantasiam de garças e os homens de cavaleiros da montanha e ficam doze dias sem voltar pra casa, numa orgia descomunal. Tratava-se de uma festa religiosa mas com o passar dos anos a coisa foi ganhando caráter ecumênico até virar essa orgia grandiosa, à céu aberto, em todos os lugares. Este cenário me fez constatar a grande maré de azar em que eu vinha levando a minha vida.
Durante os outros dias do ano, eu acreditava estar acontecendo comigo o que vinha acontecendo com o mundo inteiro ou até pior mas a questão é que os jornais gostam da tragédia alheia que nos conforta e estabiliza. Antes eu pensava ser a minha crise a crise de todos mas durante a cerimônia festiva pude constatar a facilidade com que esse povo deixava sua crise de lado. Mas o que me desestabilizou mesmo foi o fato de eu estar sozinho neste país ilhado, sem filhos, sem mulher, sem passado e não conseguir mergulhar na lambança carnal que duraria apenas doze dias.
Estava decidido, inspirado e simples. Avistei um velho estádio onde agora faziam shows de toda espécie, do rock ao choro. Nesta noite tocaria um mexicano que ficou rico cantando em francês. Língua linda, o francês, principalmente para os mexicanos. O estádio já estava lotado, por dentro e por fora, todos queriam ver o tal cantor e o meu plano era simples, eu conhecia os seguranças dessa casa de shows. Ao invés de arrebatar minha vida com as próprias mãos, eu aproveitaria a oportunidade para cumprir a velha promessa de um dia enviar dinheiro pra casa, pra meu pai, minha mãe e minha querida irmã, Sonia, que nascera com o down, tendo conseguido notas melhores do que as minhas na época da escola.
Se eu pular este muro de prata e conseguir cair no descampado, onde ficam os seguranças com seus cães malucos, eu certamente estarei encerrado e surgindo a perícia e tudo mais, a indenização será inevitável e talvez até a embaixada precise intervir no caso. Neste país, não há casos de um fudido como eu roubar, ou invadir uma propriedade, sozinho, veja bem, sozinho, e não sair morto. Os seguranças daqui se envergonhariam por não cumprir a sentença.
Fiquei de longe observando a multidão orgástica, repetitiva em seus trajes, os cavaleiros e as garças, sujos e melados, se empurrando para assistir ao mexicano metido à gringo. Algumas porradas suscitavam na multidão, por motivos menores, furaram a fila, gritou uma das milhares de garças. Fui para a rua de trás do estádio onde o silêncio era quase absoluto, não fosse uma marchinha repetitiva que soava sem parar, sem parar mesmo. Nas bailarinas, vi Caroline, mas era impossível, Caroline estava em Paris, não era ela, já eram sintomas de um suicida. Pensei em Caroline e acelerei o passo. O muro era alto mas os motoristas ilegais me ajudaríam nessa noite já que foi subindo num chevette velho que consegui altura para pular. Passou um grupo de meninos ao longe, eu em cima do chevette, um deles me reconheceu, ei, eu te conheço, eu li seu livro, penso, será um sinal divino? Cadafalso nem foi publicado aqui e eu sou abordado por um leitor de Cadafalso! Eu li o Contos da Montanha, o seu é um dos melhores, e seguiu. Do chevette para o descampado foi um salto definitivo, atlético, com precisão e determinação, com a mesma determinação que eu odiava Contos da Montanha e toda aquela merda que eu fiz no passado, por dinheiro e pouco dinheiro.
Eu morava em Londres, num velho apartamento colado a Victoria Station (saudades) quando o telefone tocou e eu não fui atender temendo ser algum parente, bem, sem delongas, depois o telefone tocou de novo, e era essa produtora executiva do Letras&Estrelas, que devia trabalhar com um detetive para saber que eu toparia escrever o conto da montanha por míseras 2.000 libras. Eu era jovem e com ideais, incluir meu nome nesse Hill’s Tales não estava nos meus planos. Só se fosse por profunda necessidade econômica e era exatamente o que eu vinha passando na época. Tratava-se de um projeto infame, com mais seis autores safados, um caça níquel declarado pra vender nas bancas para as senhoras de chapéus. Quando se é jovem se cria uma idéia de que as coisas vão correr bem, que até aquela dureza toda tem sua importância bibliográfica, que tudo faz parte de uma conspiração divina para que se atinja o triunfo final. Eu lhe disse que ligasse para a minha agente e ela pediu o telefone, apressada. Eu disse que ligaria pra ela primeiro e que ela ligasse de volta em cinco minutos que, aí sim, eu lhe daria o número. Eu não falava com Caroline há um ano mas ela era a única pessoa que poderia me ajudar neste momento, a única que tinha lido todas minhas peças e livros e poderia me defender por um preço mais justo, poderia transformar esses dois mil em vinte com bons argumentos. Caroline foi seca no telofone, disse que antes que eu lhe ligasse para falar de dinheiro, devia ter ligado para falar do amor.
Fiquei em casa pensando que eu não era obrigado a aceitar os convites que batem a minha porta, que íam contra tudo o que eu vinha escrevendo até então. Pensei que eu devia ter a mesma coragem que eu tive que ter para defecar da escola aos treze anos de idade, abandonar pátria e família para me aventurar como escritor na gelada Londres, pensei no Rimbaud e seu tráfico na África, no desejo que eu tinha de um dia morar num desses pequenos países da América Latina e em como Caroline estava sendo injusta comigo, já que ela também não havia me procurado durante todo esse tempo. Pensei no Roberto Toparo e que não temos que fazer o que nos convêm fazer mas o que nos é satisfatório e prazeroso, que não podemos creditar à vida esses convites infames e achar que eles virão repletos de um aprendizado que só mais tarde entenderemos. Eu atendi o telefone e disse à produtora executica que eu havia conversado com minha agente, que eu era muito grato mas não poderia aceitar o convite por acreditar que a proposta não correspondia à minha identidade autoral, não poderia fazer parte do meu repertório. No dia seguinte, ela voltaria a ligar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário